Em um dos arquivos vi um memorando que se deslocara entre os demais. Caminhei em sua direção e retirei-o; nele lia-se o seguinte:
Morbio Inferiore.
Nenhum outro título teria expressado mais precisamente minha curiosidade. Com o coração disparado, procurei nos arquivos. Tratava-se de uma divisão que continha uma quantidade considerável de papéis. Havia uma cópia da descrição do Desfiladeiro de Morbio tirada de um velho livro italiano, e em seguida uma folha em forma de livro com anotações breves sobre o papel representado por Morbio na história da Confraria. Todas referiam-se à Viagem ao Oriente e também à base e ao grupo ao qual eu pertencera. Li que nosso grupo chegara a Morbio durante aquela jornada. Lá, fora submetido a um teste que não conseguiu ultrapassar, ou seja, o desaparecimento de Leo. Apesar de que as normas da Confraria devessem ter-nos orientado, e que, mesmo no caso de um grupo ver-se privado de guias, os preceitos inculcados em nós no início da jornada fossem suficientes para orientar-nos, desde o momento em que tomamos conhecimento do desaparecimento de Leo, perdemos o controle e a fé, passando a duvidar e manter discussões inúteis. Ao finaL todo o grupo, contrariando o espírito da Confraria, dividiu-se em facções e desmembrou-se. Esta explicação para o fracasso em Morbio não mais me surpreendia. Surpreendeu-me, sim, o que li a seguir sobre o desmembramento de nosso grupo, ou seja, que tive membros da Confraria fizeram uma tentativa de escrever o relato de nossa jornada, com a descrição dos acontecimentos em Morbio. Eu era um dos três, e havia uma cópia de meu manuscrito naquela divisão. Li o conteúdo dos demais acompanhado dos mais estranhos sentimentos. De maneira geraL os dois escritores descreveram os fatos daquele dia de maneira semelhante à minha, e no entanto como me pareciam diferentes! Um deles dizia:
«A ausência do serviçal Leo revelou-nos de maneira repentina e terrível a extensão das discordâncias e dificuldades que atingiram nossa união até então aparentemente total. Alguns de nós, de fato, imediatamente suspeitaram, ou souberam, que Leo nada sofrera, e que não se tratara de fuga, mas que fora secretamente convocado pêlos magistrados da Confraria. No entanto, nenhum de nós pode considerar sem profundo arrependimento e vergonha a maneira reprovável com que nos submetemos a esse teste. Mal Leo nos deixara, vimos desaparecer a fé e a concórdia que reinava entre nós; foi como se o sangue vital de nosso grupo se esvaísse através de uma ferida invisível. A princípio surgiram divergências de opinião, depois discussões abertas sobre as mais ridículas e insignificantes questões. Lembro-me, por exemplo, de que o popular e digno regente do nosso coro, H. H., passou subitamente a afirmar que Leo levara também em sua sacola, além de outros valiosos objetos, o antigo documento sagrado, o manuscrito original do Mestre. Sua afirmativa foi motivo de acaloradas discussões, que se prolongaram por vários dias. Considerada do ponto de vista simbólico, a absurda afirmação de H. era realmente muito importante; na verdade, parecia que a prosperidade da Confraria, a união de suas fíleiras, desaparecera por completo com a ausência de Leo. O próprio músico H. foi um triste exemplo do que digo. Até aquele dia em Morbio Inferior, era um dos mais leais e fiéis irmãos da Confraria, bastante popular como artista, e, apesar de algumas fraquezas de caráter, constituía-se em um dos membros mais ativos. Mas deixou-se tomar pela melancolia, depressão e desconfiança, tornou-se profundamente negligente no cumprimento de seus deveres, e passou a agir de maneira intolerante, nervoso e irritadiço. Quando, certo dia, finalmente deixou-se ficar para trás em nossa marcha, e não voltou a aparecer, ninguém cogitou em parar para procurá-lo; tratava-se, evidentemente, de um caso de deserção. Infelizmente, ele não foi o único, até que, um dia, nada mais restava de nossa reduzida caravana...»
Li o seguinte trecho da narrativa de outro historiador:
«Assim como a antiga Roma sucumbiu após a morte de César, e o pensamento democrático através do mundo após Wilson abandonar as idéias que defendia, assim nossa Confraria desfez-se naquele malfadado dia em Morbio. No que se refere a culpas e responsabilidade, poderíamos citar dois participantes aparentemente inofensivos, o músico H. H. e Leo, um dos empregados. Estes dois homens eram membros outrora populares e fiéis da Confraria, embora não compreendessem perfeitamente a importância histórica da mesma. Desapareceram, certo dia, sem deixar qualquer vestígio, levando consigo valiosos objetos e documentos importantes, o que indica que os dois pobres diabos foram subornados por inimigos da Confraria ...»
Se a memória desse historiador era tão confusa e imprecisa, embora tivesse feito seu relatório com aparente boa-fé, na certeza de sua completa veracidade — o que valiam minhas próprias anotações? Se houvesse dez narrativas de outros autores sobre Morbio, Leo e eu provavelmente seriam contraditórias e de múrua reprovação. Não, nossos esforços históricos de nada valiam; não adiantava dar-lhes continuidade, nem prosseguir em sua leitura; era melhor deixar que se cobrissem com a poeira dos arquivos.
Estremeci ao pensamento de que tantas outras revelações me esperavam naquela hora. Como eram distorcidas as imagens refletidas por esses espelhos, como a verdade se ocultava, zombeteira e inatingível, por trás daqueles relatórios, contra-relatórios e lendas! Como saber o que era ainda verdade? E o que restaria, quando me fossem revelados os dados a meu respeito, sobre meu caráter, e minha narrativa, contidos nos arquivos?
É preciso estar preparado. De repente, não mais pude suportar a incerteza e a expectativa. Dirigi-me apressadamente à divisãoChattorum res gestae,procurei minha subdivisão e número, e lá estava diante de meu próprio nome. Tratava-se de um nicho, e ao afastar as leves cortinas nada vi escrito. Continha apenas uma imagem, um velho e gasto modelo em madeira ou cera, de um colorido pálido. Pareceu-me uma espécie de divindade ou ídolo barbárico. A princípio, não compreendi. A imagem, na realidade, consistia em duas pessoas, unidas pelas mesmas costas. Fitei-a durante alguns instantes, desapontado e surpreso. Foi então que vislumbrei uma vela presa em um candelabro, fixado na parede do nicho. Havia também uma caixa de fósforos. Acendi a vela, iluminando a imagem dupla.
A compreensão atingiu-me lentamente. Pouco a pouco comecei a suspeitar e finalmente a compreender o que aquilo representava. Era minha imagem, e aquela semelhança pareceu-me desagradavelmente imprecisa e um tanto irreal; as feições apresentavam-se distorcidas, e a expressão tinha qualquer coisa de instável, fraco, moribundo ou desejoso de morrer, mais parecendo uma peça de escultura a que poderíamos denominarTransitoriedade, Decadência,ou algo assim. Por outro lado, a figura que se achava unida à minha, formando um todo, tinha formas e cores vibrantes, e assim que percebi com quem se parecia, ou seja, o serviçal e Presidente Leo, descobri uma outra vela na parede, que também acendi. Vi então que a dupla figura, representando a mim e a Leo, tornava-se mais clara, as feições mais semelhantes, como também que a superfície das mesmas era transparente, e podia-se ver dentro delas, do mesmo modo como se vê através do vidro de um vaso ou garrafa. No seu interior havia algo que se movia lentamente, como uma serpente adormecida a deslocar-se. Ocorria alguma coisa ali dentro, como um lento e suave fluxo, ou uma fusão; e, de fato, alguma coisa em minha imagem fundiu-se ou derramou-se na dele. Vi que minha imagem começava a incorporar-se à de Leo, nutrindo-a e fortalecendo-a. Pareceu-me que, em determinado momento, toda a substância de uma fluiria para dentro da outra, e restaria apenas uma: Leo. Ele devia crescer; eu, desaparecer.