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Ainda guardo uma nítida lembrança do dia em que me apresentei, após expirar-se meu ano de noviciado, perante o Alto Trono. Foi-me então revelado o objetivo da jornada ao Oriente, e após ter-me devotado de corpo e alma a esse projeto, foi-me indagado, de maneira afáveL o que eu intimamente esperava dessa viagem ao reino da mística. Levemente ruborizado, com toda franqueza e decisão confessei aos membros reunidos que abrigava em meu coração o desejo de ver a Princesa Fátima. O Presidente compreendeu minha alusão e gentilmente colocou sua mão sobre minha cabeça, recitando as palavras que confirmavam minha admissão como membro da Confraria. —Anima pia— disse ele, exortando-me para que persistisse na fé, na coragem frente ao perigo, e que amasse meus semelhantes. Preparado após meu período de noviciado, prestei juramento, renunciei ao mundo e suas superstições, e recebi em meu dedo o anel da Confraria, ao mesmo tempo em que eram pronunciadas as palavras sobre um dos mais belos capítulos da história de nossa Confraria:

«Na terra ou no firmamento, na água ou no fogo, Os espíritos o adoram, Seu olhar atemoriza e amansa as feras mais selvagens, E até os anticristãos devem dele se aproximar com temor...»

Para minha alegria, logo após a admissão, os noviços, entre eles, eu, passaram a conhecer nossas perspectivas. Por exemplo, ao seguirmos a orientação dos superiores a fim de nos unirmos a um dos grupos de dez pessoas que viajavam pelo país para alcançar a expedição, fiquei conhecendo claramente um dos segredos da Confraria. Dei-me conta de que fazia parte de uma peregrinação ao Oriente, aparentemente uma peregrinação definida e particular — mas, na realidade, em seu sentido mais amplo, não era apenas minha nem do momento presente; aquela procissão de crentes e discípulos sempre rumara para o Oriente, incessantemente, na direção da Casa da Luz. Processara-se através dos séculos, em busca da luz e do milagre, e cada membro, cada grupo, em suma toda nossa hoste e sua grande peregrinação, era apenas uma onda na eterna maré de seres humanos, das eternas batalhas do espírito do homem em direção ao Oriente, em direção a Casa, Essa percepção atravessou minha mente como um raio de luz, recordando-me de imediato uma frase que aprendera no ano de noviciado, a qual sempre me causara imenso prazer sem que percebesse todo o seu conteúdo. Era do poeta Novalis, e dizia: «Para onde caminhamos sempre? Para casa!»

Nesse ínterim, nosso grupo partira em viagem; não se passara muito tempo quando encontramos outros grupos, e sentíamo-nos felizes, ligados pelo sentimento de unidade e objetivo comum. Obedientes às instruções recebidas, vivíamos como peregrinos e não fazíamos uso dos expedientes que surgem em um mundo iludido pelo dinheiro, tempo e cifras, que tiram todo o sentido da vida; artifícios mecânicos como estradas de ferro, relógios e coisas semelhantes, que são os principais dessa categoria. Outra regra por todos observada levou-nos a visitar e prestar homenagem a todos os lugares e associações relacionadas à antiga história de nossa Confraria e sua crença. Visitamos e prestamos culto a todos os locais sagrados e monumentos, igrejas e túmulos consagrados que encontrávamos no caminho; adornamos capelas e altares com flores; as ruínas eram cultuadas com canções ou contemplações silenciosas; os mortos eram lembrados com música e orações. Não era raro sermos alvo de zombaria ou vermo-nos abordados por descrentes, porém, muitas vezes ocorreu que os padres nos abençoassem e convidassem para sermos seus hóspedes, que muitas vezes as crianças a nós se juntassem com enrusiasmo, aprendendo nossas canções, e se despedissem com lágrimas nos olhos; que visitássemos monumentos esquecidos, guiados por um ancião, e que o mesmo nos contasse uma lenda sobre sua terra natal; que jovens nos acompanhassem durante parte do caminho e expressassem o desejo de unir-se à Confraria. A estes dávamos conselhos e ensinávamos os ritos e práticas iniciais do noviciado.

Percebemos os primeiros indícios de milagres, em parte assistindo-os com os próprios olhos, em parte graças a lendas e narrativas imprevistas. Certo dia, quando ainda era um membro relativamente novo, alguém mencionou que o gigante Agramant era hóspede da tenda de nossos guias, e tentava convencê-los a partir para a África a fim de libertar alguns membros da Confraria do cativeiro dos mouros. Numa outra ocasião, avistamos o Goblin, o consolador fabricante de vasos, e julgamos nosso dever rumar em direção ao Pote Azul. No entanto, o primeiro fenômeno espantoso que vi foi quando nos detivemos para orar e repousar numa capela antiga, quase em ruínas, na região deSpaichendorfisobre a única parede intacta da capela, fora pintada uma enorme imagem de São Cristóvão, tendo sobre os ombros franzinos e meio encurvados pela idade, o Menino Jesus. Os guias, como era de seu costume, não se limitaram a propor a direção que tomaríamos, convidando-nos a dar nossa opinião, pois a capela localizava-se ao lado de um poste indicador com três rumos diferentes. Somente alguns opinaram ou expressaram um desejo, porém um de nós apontou para a esquerda e sugeriu com insistência que tomássemos essa direção. Permanecemos em silêncio, aguardando a decisão dos superiores, quando São Cristóvão ergueu os braços, segurando o espesso e alongado mastro, apontando para a esquerda, direção que nosso irmão desejara tomar. Nenhum de nós se manifestou, e os guias, em silêncio, voltaram-se para o caminho indicado, que seguimos com um prazer infinito.

Não fazia muito que estávamos na Suábia quando manifestou-se uma força que não havíamos ainda percebido. Sentíramos sua forte influência durante algum tempo, sem conseguirmos distinguir se era favorável ou hostil. Era a força dos guardas da coroa que, desde os tempos mais remotos, preservavam a lembrança e a herança dos Hohenstaufen naquele país. Não sei se nossos líderes sabiam alguma coisa mais sobre isso, ou se receberam instruções a esse respeito. Só sei dizer que recebemos muitas exortações e conselhos, como na ocasião em que estávamos na montanha a caminho de Bopfingen, onde encontramos um velho guerreiro encanecido: meneou sua cabeça grisalha, com os olhos cerrados, e desapareceu sem deixar vestígios. O aviso impressionou nossos líderes a tal ponto que retornamos, ao invés de seguir para Bopfingen. Por outro lado, nas vizinhanças de Urach, um emissário dos guardas da coroa surgiu na tenda dos guias como se tivesse brotado do solo, com promessas e ameaças destinadas a colocar nossa expedição a serviço dos Staufen, e também para fazer os preparativos para a conquista da Sicília. Com a recusa a esses pedidos, ele prometeu lançar uma terrível maldição sobre a Confraria e sua expedição. É preciso frisar que estou relatando o que transpirou entre nós; os guias não mencionaram uma palavra sequer sobre o assunto. E ainda assim me parece possível que tenha sido nosso convívio problemático com os guardas da coroa que, durante muito tempo, emprestou à Confraria a imerecida reputação de uma sociedade secreta, visando a restauração da monarquia.

Em determinada ocasião, vi também um de meus companheiros enfrentar suas dúvidas; quebrou o juramento e voltou à antiga descrença. Tratava-se de um jovem a quem dedicava grande afeição. O motivo pessoal que o fez unir-se à expedição ao Oriente fora o desejo de encontrar o esquife do profeta Maomé, pois, ao que se dizia, este eleva-se ao ar por pura magia. Em uma cidadezinha da Suábia ou Alemanha, onde nos detivemos por alguns dias, já que uma oposição de Sarurno com a Lua interrompeu nosso avanço, aquele infeliz homem, que se mostrara triste e inquieto durante algum tempo, encontrou um antigo professor a quem se mantivera ligado desde os tempos de escola. O professor fez com que o jovem voltasse a compreender nossa causa à maneira dos descrentes. Após uma de suas visitas ao mestre, o pobre rapaz retornou ao acampamento num terrível estado de excitação, com as feições transtornadas. Provocou um distúrbio à porta da tenda dos guias, e, ao sair o Chefe do grupo para ver do que se tratava, gritou em altos brados que já estava farto daquela ridícula expedição que jamais nos levaria ao Oriente; que não suportava mais nossas interrupções durante dias, devido a tolas considerações astrológicas; já se cansara da inutilidade, das peregrinações pueris, das cerimônias florais, da importância que dávamos à magia, da combinação de vida e poesia; atirou o anel aos pés dos guias, dizendo que retornaria a sua casa pelo seguro caminho da estrada de ferro, e voltaria ao seu trabalho útil. Foi uma cena lamentável e chocante. Sentimos vergonha e ao mesmo tempo pena daquele homem desencaminhado. O Chefe escutou-o com complacência, inclinou-se para recolher o anel, dizendo com voz tranqíiila e cordial, que deve ter feito o protestante parecer ridículo: — Você despediu-se de nós e deseja retornar à estrada de ferro, à sensatez e ao trabalho útil. Desligou-se da Confraria, da expedição ao Oriente, da magia, dos jogos florais, da poesia. Você está dispensado de seu juramento.