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— Do voto de silêncio também? — bradou o desertor.

— Sim, também do voto de silêncio — respondeu o Chefe. -Lembre-se que você jurou nada revelar sobre o segredo da Confraria aos descrentes. Como demonstrou tê-lo esquecido, não poderá revelá-lo a ninguém.

— Esquecer? Não me esqueci de nada! — retrucou o jovem, demonstrando uma certa insegurança; e quando o Chefe voltou-lhe as costas, retirando-se em direção à tenda, ele fugiu às carreiras.

O fato nos entristeceu, mas tínhamos dias tão cheios que logo o esqueci. Algum tempo depois, contudo, quando nenhum de nós pensava mais no caso, ouvimos os habitantes de diversas aldeias e cidades pelas quais passamos mencionar o mesmo jovem. Diziam que por lá passara um rapaz (descreveram-no minuciosamente e deram seu nome), que nos procurara por toda parte. A princípio, dizia-se pertencente ao nosso grupo, e se perdera ao ficar para trás durante a viagem. Rompera então a chorar, confessando que nos havia traído e fugira, mas sentia não poder viver afastado da Confraria; desejava, ou melhor, precisava encontrar- nos, para se ajoelhar perante os guias e implorar seu perdão. Ouvimos a mesma história em toda parte; onde quer que estivéssemos, o jovem desgarrado por lá passara. Indagamos a opinião do Chefe a respeito do fato, e quais seriam as conseqíiências. — Não creio que ele nos encontre — disse laconicamente. E foi o que realmente aconteceu. Jamais voltamos a vê-lo.

Certa vez, numa conversa confidencial que travei com um dos guias, criei coragem e perguntei pelo irmão renegado. AfinaL pedira clemência e procurava por nós, argumentei; creio que deveríamos ajudá-lo a redimir-se de sua falta. Sem dúvida, tornar-se-ia o mais fiel membro da Confraria no futuro. O guia respondeu-me:

— Nós nos sentiríamos felizes se ele conseguisse nos encontrar, mas não nos cabe ajudá-lo. Ele próprio tornou difícil a recuperação de sua fé. Receio que nem mesmo nos veria ou reconheceria, se passássemos a seu lado; ele está cego. O arrependimento não basta por si só. A graça não pode ser alcançada por esse meio; ela não pode ser comprada. Isto já ocorreu com muitos outros. Homens ilustres e famosos tiveram o mesmo destino desse jovem. Em um momento de sua juventude, foram iluminados. Seguiram o sinal, mas surgiu então a zombaria alheia e a razão, dando lugar à fraqueza de espírito e ao fracasso aparente. Sentiram-se desiludidos e deprimidos, e voltaram a perder o rumo, a visão. Alguns passaram o resto da vida a nos procurar, porém sem êxito. Propalaram então pelo mundo que nossa Confraria não passa de uma bela lenda, e que ninguém deveria deixar-se enganar por ela. Outros transformaram-se em nossos inimigos implacáveis, prejudicando e injuriando a Confraria tanto quanto podiam.

Organizávamos festas maravilhosas sempre que encontrávamos outros grupos da Confraria pelo caminho; costumávamos, então, muitas vezes, formar um acampamento de centenas e até milhares de pessoas. A expedição não obedecia a um esquema estabelecido, rumavam todos na mesma direção em colunas mais ou menos cerradas. Por outro lado, havia numerosos grupos que seguiam seus próprios guias e astros, sempre prontos a incorporar-se a uma unidade mais compacta e acompanhá-la durante algum tempo, embora preparados para prosseguir seu caminho novamente separados. Alguns viajavam totalmente sós. Eu o fiz, também, em diversas ocasiões, sempre que recebia algum sinal ou chamada que me apontassem meu próprio caminho.

Lembro-me de um pequeno grupo selecionado com o qual viajamos e acampamos por alguns dias; seu objetivo era libertar alguns irmãos da Confraria, que estavam presos, juntamente com a Princesa Isabela, sob o jugo dos mouros. Diziam-se de posse da cornucópia de Hugo, e entre eles encontravam-se meus amigos o poeta Lauscher, e os artistas Klingsor e Paul Klee. Não se falava de outra coisa a não ser da África e da captura da Princesa. Sua Bíblia era o livro que narrava as aventuras de Don Quixote, a quem dedicavam sua jornada rumo à Espanha.

Era extremamente agradável encontrarmos esses grupos, assistir a suas celebrações e práticas religiosas, e também convidá-los para as nossas, escutar a narrativa de seus feitos e planos futuros, abençoá-los e, ao partir, tê-los como amigos; depois, cada um seguia seu próprio caminho. Eles alimentavam seus sonhos, ideais, um desejo secreto, e ainda assim uniam-se naquele enorme fluxo, cada um dando tudo de si, partilhando o mesmo culto e a mesma fé, prestando o mesmo juramento. Numa dessas ocasiões conheci Jup, o mágico, cuja esperança era encontrar a felicidade suprema em Caxemira; conheci também Colofino, o bruxo, que cosrumava citar seu trecho favorito das Aventuras de Simplicissimus. Encontrei ainda Luís, o Terrível, que acalentava o sonho de plantar um bosque de oliveiras na Terra Santa, cercado de escravos. Este era companheiro inseparável de Anselmo, que buscava a íris violeta de sua infância. Encontrei e amei Ninon, conhecida como «a estrangeira». Seus olhos negros luziam sob os cabelos escuros. Tinha ciúmes de Fátima, a princesa de meus sonhos, e quem sabe não era ela a própria Fátima, sem que eu o soubesse. Entregávamo-nos a essa jornada como o haviam feito anteriormente os peregrinos, imperadores e cruzados, para descerrar o sepulcro do Salvador ou estudar a magia árabe; os cavaleiros da Espanha haviam trilhado aquele mesmo caminho, bem como os eruditos alemães, monges irlandeses e poetas franceses.

Era eu, cuja única vocação consistia em tocar violino e escrever, o responsável pelas sessões de música de nosso grupo, e percebi então como é edificante e fortificadora a dedicação prolongada aos pequenos detalhes. Não só tocava violino e regia nosso coral, como também selecionava antigas canções e cantos corais. Compunha motetes e madrigais para seis e oito vozes, e os executava. Mas não entrarei em detalhes quanto a isso.

Dedicava grande estima a meus companheiros e guias; contudo, nenhum deles me ficou na lembrança como Leo, apesar de, àquela época, ninguém quase o haver notado. Leo era um de nossos empregados (naturalmente, voluntário como nós). Ajudava a carregar as bagagens e muitas vezes ficava a serviço pessoal do Chefe de Grupo. Este homem simples tinha algo de tão agradável e discretamente atraente, que atraíra a estima geral. Cumpria suas obrigações com alegria contagiante, quase sempre cantando ou assobiando, e jamais era visto, exceto quando dele precisávamos — em suma, o servidor ideal. Além do mais, exercia enorme atração sobre os animais. Quase sempre fazíamo-nos acompanhar de um cão, que a nós se incorporava por causa de Leo. Era capaz de domesticar pássaros e atrair borboletas sobre seu corpo. Seu objetivo era encontrar a chave de Salomão, com a qual seria capaz de compreender a linguagem dos pássaros e que o conduzira ao Oriente. Em contraste com determinados aspectos de nossa Confraria, que — sem desmerecer-lhe o valor e a sinceridade — eram um tanto exagerados, bizarros, pomposos e fantásticos, Leo parecia tão simples e natural, tão saudável, enfim, um amigo inteiramente desinteressado.