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A gritante disparidade de minhas lembranças pessoais torna minha narrativa extremamente difícil. Como já mencionei, às vezes caminhávamos em pequenos grupos; outras, formávamos uma tropa e até um exército, mas em certas ocasiões eu permanecia em determinadas localidades em companhia de uns poucos amigos, e até mesmo sozinho, sem tenda, sem guias, sem o Chefe do Grupo. Minha narrativa torna-se cada vez mais penosa, porque não vagávamos somente através do espaço, mas também do tempo. Nosso destino era o Oriente, mas também viajávamos para a Idade Média e para a Idade do Ouro; percorríamos a Itália ou a Suíça, mas muitas vezes passávamos a noite no século X, em companhia dos patriarcas ou duendes. Nas ocasiões em que permaneci só, revi lugares e personagens de meu próprio passado. Vagava com minha antiga noiva pelas margens da floresta do Reno Superior, farreava com meus companheiros de juvenrude em Tubingen, em Basle ou Florença, ou então saía a caçar borboletas, a observar as lontras em companhia dos colegas de escola, ou vagava com meus personagens preferidos dos livros que lera: Almansor e Parsifal, Witiko e Goldmund caminhavam a meu lado, ou então era Sancho Pança, ou éramos convidados das Barmekides. Quando retomava o caminho que me conduziria ao nosso agrupamento, em um vale qualquer, e ouvia as canções da Confraria, acampando próximo à tenda dos guias, percebia com clareza que a incursão em minha infância e os passeios com Sancho pertenciam inteiramente à jornada. Pois nosso objetivo não era unicamente o Oriente, ou melhor, o Oriente não era apenas um país ou um fato geográfico, era também o lar e a juvenrude da alma, estava em toda parte e em parte nenhuma, era o conjunto de todas as eras. Contudo, sentia-me assim por breves instantes, daí o motivo de minha enorme felicidade então. Mas tarde, quando a perdi, compreendi claramente tais ligações, sem delas tirar o menor proveito ou satisfação. Quando perdemos algo precioso e irrecuperável, temos a sensação de haver despertado de um sonho. E isto se deu, em meu caso, de maneira estranhamente precisa, pois, na verdade, minha felicidade nasceu do mesmo segredo da felicidade dos sonhos; nasceu da liberdade de experimentar simultaneamente tudo que imaginava, viver no mundo interior e exterior, manipular Tempo e Espaço como os cenários de uma peça teatral. À medida que nós, membros da Confraria, percorríamos o mundo sem automóveis e navios, conquistando os países arrasados pela guerra com a nossa fé, transformando-os em paraíso, transportávamos o passado, o futuro e o irreal para o momento presente.

Encontrávamos com freqiiência, na Suábia, em Bodensee, na Suíça, por toda parte, pessoas que nos compreendiam ou que, de certo modo, sentiam-se gratas pela existência da Confraria, de nós e de nossa Viagem ao Oriente. Por entre as linhas férreas e ladeiras de Zurique encontramos a Arca de Noé, guardada por velhos cães que atendiam todos pelo mesmo nome, e que foram conduzidos sobre as águas rasas de um calmo período por Hans C. até o descendente de Noé, o amigo das artes. Seguimos para Winterthur, penetrando no Armário Mágico de Stocklin; fomos hóspedes do Templo Chinês, com seus vasos de incenso reluzindo sob a Ma j a de bronze, onde o rei negro tocava docemente sua flauta, no tom vibrante do gongo do templo. Encontramos, no sopé das Montanhas do DoL Suon Mali, uma colônia do Rei do Sião, onde, por entre os Budas de pedra e bronze, oferecemos libações e incenso em agradecimento à hospedagem.

Uma das mais belas experiências ocorreu durante as celebrações da Confraria em Bremgarten; o círculo de magia cercou-nos então de maneira envolvente. Recebidos por Max e Tilli, os senhores do castelo, ouvimos Othmar executando Mozart no grandioso piano do imenso salão. Os jardins estavam povoados de papagaios e outros pássaros falantes. A fada Armida cantava à beira da fonte. Com os fartos cabelos anelados, a cabeça do astrólogo Longos inclinava-se ao lado da amada figura de Henry de Ofterdingen. Os pavões faziam-se ouvir no jardim, e Luís conversava em espanhol com o Gato de Botas. Hans Resom, agitado após espreitar no jogo de cabra-cega da vida, jurava fazer uma peregrinação ao túmulo de Carlos, o Grande. Este foi um dos períodos de ouro de nossa viagem; acompanhava-nos um fluxo de magia que tudo purificava. Os habitantes ajoelhavam-se para adorar a beleza, o senhor do castelo recitou um poema que narrava nossos feitos do dia precedente. Os animais da floresta rondavam o muro do castelo, e peixes cintilavam nas águas do rio, em cardumes agitados, alimentando-se de bolos e vinho.

O ponto culminante dessas experiências, que merece realmente ser narrado, revestiu-se de uma característica que revela seu espírito. Talvez minha descrição pareça pobre e até tola, mas todos os que festejaram os dias passados em Bremgarten confirmariam os menores detalhes e acrescentariam os seus, ainda mais belos. Jamais esquecerei o brilho mortiço da cauda dos pavões sob o luar, surgindo entre as árvores altaneiras, nem as sereias que emergiam cintilantes, com o corpo prateado, nas margens sombrias, por entre as rochas. Don Quixote, de pé sob a castanheira ao lado da fonte, em sua primeira vigília noturna, enquanto as derradeiras velas romanas do espetáculo pirotécnico caíam suavemente sob as torres do castelo, e meu companheiro Pablo, ornado de rosas, tocava o órgão persa para as donzelas. Mas — ah! — quem poderia imaginar que o círculo de magia seria rompido tão cedo! Que todos nós — e também eu, até eu — nos perderíamos nos insondáveis desertos da realidade planejada, exatamente como os funcionários e ajudantes de lojas que, após uma festa ou um passeio dominical, voltam à rotina de mais um dia de trabalho.

Nenhum de nós abrigava tais pensamentos àquela época. O aroma dos lilazes nas torres do castelo de Bremgarten penetrava em meu quarto. Podia ouvir o rio correndo por sob as árvores. Saltei a janela e penetrei na noite, embriagado de felicidade e ternura. Passei furtivamente pelo cavaleiro de guarda e os convivas do banquete, alcançando a borda do rio com suas mansas águas, e as alvas e reluzentes sereias. Fui por elas transportado à sua fria, enluarada e cristalina morada, onde brincavam languidamente com coroas e correntes douradas de seu tesouro. Tive a sensação de haver passado meses sob aquelas profundezas cintilantes; conrudo, ao subir à tona e nadar para a margem, inteiramente revigorado, ainda podia ouvir Pablo tocando o órgão no jardim, e a lua ainda brilhava alta no céu. Vi Leo que brincava com doispoodlesbrancos, o rosto infantil irradiando felicidade. Encontrei Longos sentado no bosque. Escrevia caracteres gregos e hebraicos em um livro que colocara sobre os joelhos; das letras pareciam saltar dragões e serpentes coloridas. Ele não me fitou; continuou pintando, absorto na escrita serpeante. Permaneci longo tempo observando o livro por sobre seus ombros curvados. Vi as serpentes e os dragões que nasciam de suas mãos turbilhonar e desaparecer em silêncio, na direção do escuro bosque. — Longos, meu prezado amigo! -murmurei. Mas ele não me ouviu, tão distante estava seu mundo do meu. Um pouco além, sob as árvores iluminadas pelo luar, Anselmo passeava com uma íris nas mãos; fitava, sorrindo, absorto em seus pensamentos, o purpúreo cálice da flor.

Voltei a impressionar-me de maneira um tanto dolorosa com um fato que observara diversas vezes durante a viagem, sem que pudesse refletir profundamente a respeito, nos dias que passamos em Bremgarten. Havia entre nós muitos artistas, pintores, músicos e poetas. O ardente Klingsor, o irrequieto Hugo Wolf, o taciturno Lauscher e o alegre Brentano lá estavam — mas, apesar de pessoas agradáveis e entusiasmadas, notei que, sem exceção, seus personagens imaginários eram mais vivazes, belos, felizes e por certo mais perfeitos e reais do que os poetas e seus próprios criadores. Pablo irradiava inocência e contentamento com sua flauta, mas seu poeta desvaneceu-se como uma sombra na direção do rio, quase transparente sob o luar, buscando a solidão.