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Hoffman, cambaleante em virtude da bebida, corria por entre os convidados, falando muito, com sua figura pequena e travessa, também me parecendo, como os demais, um tanto irreal, quase ausente, como se não fosse palpável e verdadeiro. O arquivista Lindhorst, simulando uma luta com os dragões, lançava fogo pelas narinas, como um máquina a vapor. Indaguei a Leo, o criado, por que os artistas geralmente pareciam semi-existir, ao passo que suas obras permaneciam tão incontestavelmente vivas. Leo fitou-me com surpresa. Deixou então escapar-lhe das mãos o cãozinho com que brincava e respondeu: — Acontece o mesmo com as mães. Ao gerarem os filhos, amamentá-los e torná-los belos e fortes, elas próprias passam à insignificância, e ninguém mais por elas se inquieta.

— Mas isto é muito triste — disse eu, sem refletir profundamente sobre o fato.

— Não creio que seja mais triste que tudo o mais — retrucou Leo. — Talvez seja triste e ao mesmo tempo belo. A lei assim o determina.

— A lei? — indaguei, curioso. — De que lei está falando, Leo?

— A lei de servir. Quem desejar viver muito deve servir, mas aquele que desejar governar não viverá por longo tempo.

— Então por que tantas pessoas lutam para governar?

— É que elas não compreendem. São poucos os que nascem para governar: estes vivem sempre felizes e saudáveis. Todos os demais que se tornam senhores através do esforço morrem sem nada.

— Como nada, Leo?

— Em um hospital, por exemplo.

Não consegui compreendê-lo muito bem, mas suas palavras ficaram-me na lembrança e me fizeram julgar que Leo sabia todas as coisas, talvez mais do que nós, ostensivamente seus senhores.

2

CADA um de nós, participantes desta inesquecível jornada, teve suas explicações quanto ao motivo pelo qual o fiel Leo decidiu abandonar-nos subitamente, em meio ao perigoso desfiladeiro do Morbio Inferior. Foi muito mais tarde que comecei a suspeitar vagamente, e analisar as circunstâncias e o sentido mais profundo do fato. Pareceu-me também que tal acontecimento, aparentemente casual, mas na realidade de extrema importância, ou seja, o seu desaparecimento, não foi absolutamente um acidente, mas um elo na cadeia de fatos pela qual o eterno inimigo procurava levar o infortúnio à nossa jornada. Naquela fria manhã de outono, em que demos pela falta de Leo, e na qual seriam infrutíferas as tentativas de busca, não fui o único a experimentar, pela primeira vez, uma sensação de desgraça iminente através de um destino ameaçador.

Era esta, pelo menos, a nossa disposição na ocasião. Após empreendermos a perigosa travessia da Europa e parte da Idade Média, acampamos em um estreito vale rochoso, um violento despenhadeiro na fronteira da Itália, à procura de Leo, desaparecido inexplicavelmente. Quanto mais o procurávamos e víamos nossas esperanças de encontrá-lo diminuírem com o passar do dia, mais nos oprimia o pensamento de que não se tratava apenas de um serviçal estimado e amáveL que sofrera algum acidente ou se evadira, ou mesmo fora capturado por inimigos -mas que tudo indicava o aparecimento de problemas, o primeiro indício de tempestade a se abater sobre nós.

Passamos todo o dia, só nos detendo à noitinha, em busca de Leo. Vasculhamos todo o despenhadeiro, o que, além de nos deixar em estado de exaustão, desesperança e inutilidade crescentes, fazia-nos refletir como era estranho e fantástico que, a cada hora, o desaparecimento do criado crescesse em importância, e sua ausência nos criasse tantas dificuldades. Não nos preocupávamos apenas com o belo, amável e pressuroso jovem; à medida que sua perda se evidenciava, mais indispensável o julgávamos. Sem a sua alegria e canções, seu belo rosto, o entusiasmo pela nossa magnífica jornada, o próprio empreendimento parecia perder inexplicavelmente seu sentido. Pelo menos era assim que me sentia. A despeito de todos os esforços e pequenos desencantos durante os meses anteriores à viagem, jamais experimentara momentos de fraqueza interior, de dúvidas profundas; não havia generais vitoriosos, nem pássaros em seu vôo para o Egito mais seguros de seus objetivos, de sua missão, da retidão de atitudes e aspirações do que eu, nessa jornada. Agora, porém, naquele local fatídico, ouvindo os constantes chamados e sinais de nossas sentinelas durante todo o ensolarado dia de outubro, numa expectativa crescente, cada vez mais agitado, aguardando a chegada de notícias, e sofrendo a decepção, ao fitar aqueles rostos perplexos, pela primeira vez fui tomado por dúvidas e tristeza. E, à medida que tais sentimentos tomavam corpo, mais claro percebia que não apenas perdera as esperanças de reencontrar Leo, como também que tudo se tornara então incerto e duvidoso; estavam ameaçados o valor e o sentido das coisas; nosso companheirismo, a fé, o juramento, a Viagem para o Oriente, nossa própria vida.

Mesmo que estivesse errado ao supor que todos experimentassem os mesmos sentimentos, que mais tarde estivesse enganado a respeito de minhas experiências interiores e tantas outras coisas posteriormente ocorridas e erroneamente atribuídas àquele dia, mesmo assim permanece, a despeito de tudo, o estranho fato da bagagem de Leo. Deixando de lado os ânimos pessoais, esta foi, de fato, uma fonte de preocupação por demais estranha, fantástica e cada vez mais acentuada entre nós. Já naquele dia, no despenhadeiro de Morbio, ou durante nossa busca ansiosa ao desaparecido, a princípio um, em seguida outros, começaram a dar pela falta de algo de grande importância, indispensável à bagagem, que não pôde ser encontrado. Pareceu-nos que todos esses objetos só poderiam estar em poder de Leo, e embora este, como os demais, levasse apenas a habitual sacola de linho nas costas, a que fora perdida continha o que de mais valioso levávamos conosco na viagem.

É uma fraqueza natural do homem julgar que o que perdemos possui um valor exagerado e parece menos dispensável do que tudo o que possuímos. Embora muitos dos objetos, cuja perda no despenhadeiro de Morbio tanto nos perrurbou, mais tarde nos parecessem sem importância, é preciso reconhecer que, na ocasião, ficamos alarmados, com justos motivos, pelo desaparecimento de tantas coisas de valor.

O segundo fato extraordinário e singular foi que os objetos perdidos, quer aparecessem mais tarde ou não, assumiram importância gradativa, e aos poucos os pertences que pareciam perdidos, que erradamente lamentávamos com tanto sentimento e aos quais déramos uma significação exagerada, voltaram a aparecer em meio às nossas provisões. Devo esclarecer, para que fique explícito o que era verdadeiro e ao mesmo tempo inexplicável, que ao prosseguirmos na jornada, os utensílios, os objetos de valor, o roteiro e documentos que se haviam perdido nos pareceram, para nossa vergonha, indispensáveis. Na verdade, era como se cada um de nós forçasse ao máximo a imaginação para se convencer de que aquelas eram perdas terríveis e irreparáveis, como se cada um se esforçasse para dar como perdido o que considerasse mais valioso para si, e o lamentasse; para uns, eram os passaportes, para outros, os mapas ou a Carta de Recomendação para o Califa. Todos afligiam-se com alguma coisa. E, embora terminássemos por compreender que muitos objetos dados como perdidos na verdade não o estavam, ou que eram desnecessários, houve realmente algo valioso, de importância inestimável, um documento indispensável que se constiruiu de fato em uma grande perda.

Discutíamos inutilmente se o documento desaparecido juntamente com Leo estivera de fato em nossa bagagem. Todos concordaram quanto ao seu valor e a falta que nos faria, mas poucos (inclusive eu) podiam afirmar que o havíamos trazido conosco. Alguém assegurou que havia um documento semelhante na bagagem de Leo; não se tratava do documento original, era apenas uma cópia; outros declararam que não fora sequer cogitado levarmos o documento nem sua cópia para a viagem, já que isto provocaria zombarias em relação ao sentido de nossa jornada. Houve discussões acaloradas, surgindo opiniões contraditórias quanto ao paradeiro do original (não importava se possuíamos apenas a cópia, ou que a tivéssemos ou não perdido). Ficou estabelecido que o documento fora confiado ao governo em Kyffhauser. Absolutamente, contestou alguém, suas cinzas encontram-se na urna crematória de nosso falecido mestre. Bobagem, retrucou um outro, o documento da Confraria fora escrito em um código conhecido apenas pelo mestre, e queimado juntamente com seu cadáver, de acordo com seu desejo. Eram infrutíferos os interrogatórios sobre o documento original, pois, após a morte do mestre, ninguém pudera lê-lo. Era, no entanto, necessário estabelecer o local em que se encontravam as quatro (seis, diziam alguns) traduções do original, elaboradas quando o mestre ainda era vivo, sob sua supervisão. Foi dito ainda que existiam traduções em chinês, grego, hebraico e latim, e que estavam depositadas nas quatro antigas capitais. Houve muitas outras explicações; alguns defendiam-nas com obstinação, outros aceitavam ora um, ora outro argumento, para novamente mudarem de opinião. Não demorou muito para que deixasse de reinar a certeza e a união em nossa comunidade, embora a grande meta ainda nos mantivesse coesos.