Se pudesse encontrar o caminho! Se pudesse apenas dar o primeiro passo!
— Deixe Leo de lado, liberte-se dele! — exortara-me Lucas. Eu só poderia livrar-me dele destruindo meus pensamentos e a revolta que sentia em meu estômago!
Oh, Deus, ajude-me.
4
TUDO me parece ainda diferente, e ainda não pude definir se foi possível resolver meu problema. Mas ocorreu um fato que jamais esperara — ou talvez o esperasse, antegozasse, desejando-o e temendo-o ao mesmo tempo. E, no entanto, ainda me parece estranho e improvável.
Fui muitas vezes a Seilergraben, talvez mais de vinte, durante o período que julguei ser-me favorável, e geralmente passava pelo 69A, dizendo para mim mesmo: — Tentarei mais uma vez, se nada acontecer, não volto mais. — Mas lá estava eu de novo, e, dois dias atrás, consegui satisfazer meus anseios. E como os satisfiz!
Ao aproximar-me da casa, com cujas rachaduras e fissuras do reboco cinza-esverdeado já estava familiarizado, ouvi o assobio de uma canção popular, vindo da janela de cima. De nada sabia ainda, mas permaneci na escuta. A música despertou lembranças adormecidas em minha mente. Era uma música banal, mas lindamente executada, com notas leves e agradáveis, estranhamente puras, tão alegre e natural como as canções dos pássaros. Detive-me para escutá-la, como que encantado, e ao mesmo tempo comovido, sem que nenhum pensamento me desviasse dela. E se algum houve, devo ter julgado que se tratava de um homem muito feliz e afável que assobiava daquela maneira. Durante alguns minutos senti-me pregado ao solo. Um velho com o rosto doentio e encovado passou por mim. Viu-me parado e deteve-se também para ouvir por um breve momento, e sorriu com compreensão ao afastar-se. Seu comovente olhar envelhecido pareceu dizer-me:
— Não se mova, não é sempre que se pode ouvir algo assim.
Seu olhar animou-me. Senti-me triste quando partiu. Naquele mesmo momento, contudo, percebi que o assobio era a concretização de todos os meus anseios, que seu autor devia ser Leo.
Já começava a escurecer, mas não havia luz nas janelas. A música de simples variações cessara. Fez-se silêncio. — Agora, ele acenderá as luzes — pensei, mas tudo permaneceu na escuridão. Escutei então uma porta abrir-se no andar de cima e, em seguida, o ruído de passos na escada. A porta da casa foi aberta e dela surgiu alguém que caminhava no mesmo ritmo do assobio, com leveza e alegria, embora o andar fosse firme, saudável e jovial. Vislumbrei um homem esguio, sem chapéu, não muito alto, e minhas suspeitas transformaram-se ern certeza. Era Leo; não só o Leo do catálogo, mas o próprio Leo, nosso querido companheiro de viagem e servidor, cujo desaparecimento, cerca de dez anos atrás, nos trouxera tantos dissabores e desordem. Senti um impulso de dirigir-me a ele naquele instante de júbilo e surpresa. Lembrei-me então de que o ouvira assobiar muitas vezes durante a Viagem ao Oriente. Eram os mesmos acordes de outrora, porém, como me pareceram estranhamente diferentes! Invadiu-me uma enorme tristeza, como se me apunhalassem o coração: como tudo tinha mudado a partir de então, o céu, o ar, as estações, os sonhos, o sono, o dia e a noite! Como as coisas se haviam transformado para mim quando, graças a uma simples lembrança do passado, um assobio e o ritmo familiar de passos me afetaram tão profundamente, causando-me ao mesmo tempo tanto prazer e tanta dor!
O homem passou rente a mim, a cabeça descoberta e elástica envolta em uma aura de serenidade, quando a vi por trás, surgindo sobre a camisa azul de colarinho aberto. Sua figura movia-se com agilidade e leveza através da escura alameda, quase inaudível em sandálias finas ou sapatos tênis. Eu o segui sem nenhum propósito determinado. Como poderia deixar de fazê-lo! Ele prosseguia caminhando, e embora o passo fosse leve e fáciL assemelhava-se também à noite; tinha as mesmas características do crepúsculo, era companheiro da hora, continha os sons reprimidos do centro da cidade, a luz bruxuleante das primeiras lâmpadas que começavam a se acender.
Dirigiu-se ao pequeno parque do Portão de São Paulo, desaparecendo em meio aos altos e roliços arbustos, e eu apressei o passo para não perdê-lo de vista. Lá estava ele novamente; passeava lentamente ao longo dos canteiros de lilazes e acácias. O caminho bifurcou-se no pequeno bosque. Havia alguns bancos ao longo do gramado. Ali, sob as árvores, já escurecera. Leo passou pelo primeiro banco; nele estava sentado um jovem casal. O banco seguinte estava vazio. Ele sentou-se, inclinando a cabeça para trás, e durante alguns minutos contemplou as folhas e as nuvens. Em seguida tirou do bolso do casaco uma caixinha branca de metaL colocou-a a seu lado no assento do banco, destampou-a e lentamente pôs-se a tirar da caixa algo que colocou na boca e comeu com prazer. Enquanto isso, eu caminhava de um lado para outro na entrada do bosque; dirigi-me então ao banco onde se encontrava e sentei-me na extremidade oposta. Ele ergueu o olhar e fitou-me com seus olhos cinza-claros, sem interromper a refeição. Comia frutas secas, ameixas e damascos. Tirava-as uma a uma por entre dois dedos, apertava-as e apalpava, levava-as à boca e as mastigava demoradamente, com deleite. Passou-se muito tempo até que comesse a última fruta. Fechou então a caixa e a colocou de lado, inclinou-se para trás e estendeu as pernas. Agora podia ver que seus sapatos de lona tinham a sola de corda trançada.
— Vai chover hoje — disse ele subitamente, não sei se para mim ou para si próprio.
— É, parece que sim — respondi, um tanto embaraçado, pois se não reconhecera minhas feições e meu andar, era possível, eu tinha quase certeza, de que se recordaria de minha voz.
Mas ele não me reconheceu absolutamente, nem mesmo pela voz, e embora fosse esse o meu primeiro desejo, causou-me enorme decepção.
Não fora reconhecido. Ele permanecia o mesmo após dez anos, não envelhecera; comigo ocorrera de maneira diferente, melancolicamente diferente.
— Você assobia muito bem — disse eu.
— Estive a escutá-lo há pouco em Seilergraben. Causou-me enorme prazer. Eu já fui músico.
— De verdade? — exclamou amavelmente.
— É uma bela profissão. Com que então o senhor desistiu?
— Sim, por enquanto. Cheguei até a vender meu violino.
— Foi mesmo? Que pena! O senhor está em dificuldades... isto é, o senhor está com fome? Ainda tenho alguma coisa de comer em casa. Trago também algum dinheiro no bolso.
— Não, não — repliquei rapidamente — não foi isso que quis dizer. Estou em boa situação. Tenho mais do que o necessário. Mas de qualquer modo, muito obrigado; foi muito gentil em oferecer-me. Não é sempre que se encontram pessoas assim.
— O senhor acha? Talvez tenha razão. As pessoas às vezes são muito estranhas. O senhor também é uma pessoa estranha.