– Parece melhor agora. Acho que consigo chegar bem – disse.
– Até logo.
– Tchau.
Joe foi apressado para a esquerda. Croyd o observou por um momento, depois avançou. Mais adiante na rua um homem saiu correndo de uma porta, gritando. Ele pareceu ficar maior e seus movimentos se tornaram mais erráticos à medida que seguia para o centro da rua. Então explodiu. Croyd pressionou as costas contra a parede de tijolos à sua esquerda e observou, com o coração acelerado, mas não houve mais nenhuma perturbação. Ouviu o megafone de novo, de algum ponto a oeste, e dessa vez as palavras eram mais claras: “As pontes estão fechadas para carros e pedestres. Não tentem usar as pontes. Voltem para suas casas. As pontes estão fechadas...”
Ele tornou a avançar. Uma única sirene soou em algum lugar a leste. Um avião passou acima, voando baixo. Havia um corpo retorcido em um umbral à esquerda; ele desviou os olhos e acelerou o passo. Viu fumaça do outro lado da rua, procurou chamas e as viu se erguendo do corpo de uma mulher sentada no degrau de uma entrada, com as mãos na cabeça. Ela parecia encolher enquanto ele olhava, depois, caiu para a esquerda com um barulho de chocalho. Ele cerrou os punhos e seguiu em frente.
Um caminhão do Exército saiu da rua lateral na esquina em frente. Ele correu até lá. Um rosto com capacete se virou para ele do lado do carona.
– Por que está na rua, filho? – perguntou o homem.
– Estou indo para casa – respondeu.
– Onde fica?
Ele apontou para a frente.
– Dois quarteirões – disse.
– Vá direto para casa – ordenou o homem.
– O que está acontecendo?
– Estamos sob lei marcial. Todos têm que ficar em casa. Também é uma boa ideia manter as janelas fechadas.
– Por quê?
– Parece que foi alguma espécie de bomba biológica que explodiu. Ninguém sabe ao certo.
– Era o Jetboy que...
– Jetboy está morto. Ele tentou detê-los.
Os olhos de Croyd de repente se encheram de lágrimas.
– Vá direto para casa.
O caminhão atravessou a rua e seguiu para oeste. Croyd atravessou correndo e desacelerou ao chegar à calçada. Começou a tremer. De repente se deu conta da dor nos joelhos, que os havia arranhado ao engatinhar sobre veículos. Enxugou os olhos. Sentia um frio terrível. Parou no meio do quarteirão e bocejou várias vezes. Cansado. Estava inacreditavelmente cansado. Começou a se mover. Seus pés pareciam mais pesados do que nunca. Parou novamente sob uma árvore. Ouviu um gemido acima de sua cabeça.
Quando ergueu os olhos, percebeu que não era uma árvore. Era alto e marrom, com raízes e esguio, mas havia um rosto humano imensamente alongado perto do alto, e era de lá que vinha o gemido. Enquanto se afastava, um dos galhos agarrou seu ombro, mas era uma coisa fraca e mais alguns passos o deixaram fora de alcance. Ele choramingou. A esquina parecia estar a quilômetros de distância, e depois havia mais um quarteirão...
Ele estava com demorados acessos de bocejo e o mundo refeito perdera a capacidade de surpreendê-lo. E daí se um homem voava sem ajuda pelas ruas laterais? Ou se havia uma poça com rosto humano na sarjeta à sua direita? Mais corpos... Um carro virado... Uma pilha de cinzas... Fios telefônicos pendurados...
Ele se arrastou até a esquina. Apoiou-se em um poste, escorregou lentamente e se sentou encostado nele.
Queria fechar os olhos. Mas aquilo era tolice. Ele morava logo ali. Só mais um pouco e poderia dormir na própria cama.
Agarrou o poste e se levantou com dificuldade. Mais uma travessia.
Chegou ao seu quarteirão, a visão embaçada. Só mais um pouco. Ele conseguia ver a porta...
Ouviu o som deslizante e rangente de uma janela se abrindo, ouviu seu nome ser chamado acima. Ergueu os olhos. Era Ellen, filha caçula dos vizinhos, olhando para ele.
– Lamento pela morte do seu pai – disse.
Ele quis chorar, mas não conseguiu. Os bocejos esgotaram toda a sua força. Ele se apoiou na porta e tocou a campainha. O bolso com a chave dentro parecia muito distante...
Quando seu irmão Carl abriu a porta, ele caiu a seus pés e descobriu que não conseguia se levantar.
– Estou muito cansado – disse a ele e fechou os olhos.
II – O assassino no coração do sonho
A infância de Croyd desapareceu enquanto dormia, naquele primeiro Dia da Carta Selvagem. Quase quatro semanas se passaram antes que ele acordasse, e estava mudado, assim como o mundo ao redor. Não era apenas que estivesse quinze centímetros mais alto, mais forte do que achava que alguém poderia ser e coberto com finos pelos vermelhos. Também descobriu rapidamente, enquanto se olhava no espelho do banheiro, que os pelos tinham propriedades peculiares. Sentindo repulsa por sua aparência, desejou que não fossem vermelhos. Imediatamente começaram a desbotar até um tom louro-claro, e ele sentiu um formigamento não exatamente desagradável sobre toda a superfície do corpo.
Intrigado, desejou que virassem verdes, e viraram. Novamente o formigamento, dessa vez mais como uma onda de vibração passando. Ele quis preto, e enegreceram. Depois, mais uma vez claros. Só que dessa vez ele não parou em louro-claro. Mais claro, mais claro; giz, albino. Ainda mais claro... Qual era o limite? Começou a sumir de vista. Podia ver a parede de azulejos atrás, através de seu perfil esmaecido no espelho. Mais claro...
Sumiu.
Levou as mãos diante do rosto e não viu nada. Pegou a toalha de banho encharcada e a levou ao peito. Ela também ficou transparente, desapareceu, embora ainda sentisse sua presença molhada.
Ele retornou ao louro-claro. Parecia o mais aceitável socialmente. Então se enfiou no que havia sido seu jeans mais largo e colocou uma camisa de flanela cinzenta, que não conseguiu abotoar por completo. As calças só chegavam às canelas. Silenciosamente, desceu as escadas descalço e foi até a cozinha. Estava faminto. O relógio do saguão lhe disse que eram quase três. Ele havia dado uma olhada na mãe, no irmão e na irmã, mas não perturbou o sono deles.
Havia metade de um pão na caixa e ele o rasgou, enfiando grandes pedaços na boca, mal mastigando antes de engolir. Em dado momento, mordeu o dedo, o que só o desacelerou um pouco. Encontrou um pedaço de carne e outro de queijo na geladeira e os comeu. Também bebeu quase um litro de leite. Havia duas maçãs no balcão e as comeu enquanto vasculhava os armários. Uma caixa de biscoitos. Mastigou enquanto continuava a procurar. Seis biscoitos. Engoliu. Meio pote de manteiga de amendoim. Comeu de colher.
Nada. Ele não conseguiu encontrar mais nada e ainda sentia uma fome terrível.
Então a enormidade do seu banquete o chocou. Não havia mais comida na casa. Recordou da tarde louca de sua volta da escola. E se estivesse faltando comida? E se tivesse recomeçado o racionamento? Ele havia acabado de comer a comida de todos.
Tinha de conseguir mais, para os outros, bem como para si. Foi até a sala da frente e olhou pela janela. A rua estava deserta. Ficou pensando na lei marcial sobre a qual ouvira falar no caminho da escola para casa – há quanto tempo? Aliás, por quanto tempo dormira? Tinha a sensação de que havia sido muito.
Destrancou a porta e sentiu o frescor da noite. Uma das luzes da rua que estavam funcionando brilhava através dos galhos nus de uma árvore próxima. Ainda havia algumas poucas folhas nas árvores da rua na tarde dos problemas. Pegou a chave extra na mesa do saguão, saiu e trancou a porta atrás de si. Os degraus, que ele sabia que deviam estar frios, não pareceram particularmente gelados a seus pés nus.
Então parou e recuou para a sombra. Era assustador não saber o que havia lá fora.
Ele ergueu as mãos e as segurou à luz do poste.
– Claro, claro, claro...
Elas sumiram até a luz passar através delas. Continuaram a se apagar. Seu corpo se arrepiou.
Quando desapareceram, ele baixou os olhos. Parecia não restar nada dele a não ser o formigamento.
Então subiu a rua apressado, uma sensação de enorme energia dentro dele. O estranho ser arbóreo desaparecera do quarteirão seguinte. As ruas estavam liberadas ao tráfego, embora ainda houvesse muito entulho no meio-fio e quase todos os veículos estacionados que via tivessem sofrido algum dano. Parecia que todo prédio pelo qual passava tinha pelo menos uma janela fechada com papelão ou madeira. Várias árvores da rua eram troncos destroçados, e o poste de metal na esquina seguinte estava muito curvado para um lado. Ele se apressou, surpreso com a rapidez de seu avanço, e quando chegou à escola viu que permanecia intacta, a não ser por alguns vidros que faltavam. Prosseguiu.