Agora não havia nenhuma dificuldade para conseguir comida. O enorme número de mortes ocorridas desde a liberação do vírus resultara em abundância nos depósitos locais, e as lojas estavam reabrindo com suas rotinas de distribuição normalizadas.
Sua mãe estava passando a maior parte do tempo na igreja, e Carl e Claudia voltaram à escola, que reabrira pouco antes. Croyd sabia que ele mesmo não voltaria à escola. O estoque de dinheiro ainda era grande, mas refletindo que dessa vez ele dormira nove dias mais do que da primeira, achou que seria uma boa ideia ter dinheiro extra na mão. Ele se perguntou se conseguiria aquecer a mão o suficiente para abrir um buraco na porta de metal de um cofre. Ele tivera grande dificuldade para abrir o primeiro – na verdade quase desistiu –, e Bentley havia garantido que era uma “lata”. Ele saiu e praticou em um pedaço de cano galvanizado.
Tentou planejar o serviço com cuidado, mas sua avaliação foi ruim. Teve de abrir oito cofres naquela semana antes de conseguir um bom dinheiro. A maioria deles tinha apenas papéis. Ele sabia que havia disparado alarmes e isso o deixava nervoso; esperava que suas digitais também mudassem quando dormia. Trabalhou o mais rápido possível e desejou que Bentley estivesse de volta. O homem-cachorro teria sabido o que fazer, sentia. Em várias oportunidades ele teve indícios de que sua ocupação normal envolvera algo não exatamente legal.
Os dias se passaram mais rápido do que teria desejado. Comprou um grande e variado guarda-roupas. À noite, caminhava pela cidade observando os sinais de danos que permaneciam e o avanço das obras de recuperação. Acompanhou as notícias da cidade, do mundo. Não era difícil acreditar em um homem do espaço sideral quando o resultado do vírus estava ao seu redor. Perguntou a um homem com cabeça em forma de bala e dedos palmados onde poderia encontrar o Dr. Tachyon. O homem lhe deu um endereço e um número de telefone. Ele os guardou na carteira, e não ligou nem foi. E se o médico o examinasse, dissesse que não era problema e o curasse? Àquela altura ninguém mais na família conseguia ganhar a vida.
Chegou o dia em que seu apetite aumentou novamente, o que para ele significava que seu corpo estava se preparando para outra mudança. Dessa vez observou com mais atenção o que sentia, para futura referência. Demorou o restante daquele dia e a noite e parte do dia seguinte antes que começassem o frio e as ondas de sonolência. Ele deixou um bilhete desejando boa-noite aos outros, pois estavam fora quando a sensação tomou conta dele. E dessa vez trancou a porta do quarto, pois descobriu que o haviam observado regularmente enquanto dormia e em dado momento até haviam levado um médico – uma mulher, que ao tomar conhecimento de seu histórico, prudentemente recomendara que simplesmente o deixassem dormir. Também sugerira que procurasse o Dr. Tachyon ao acordar, mas a mãe perdera o papel no qual ela havia escrito isso. A cabeça da Sra. Crenson parecia frequentemente distraída naqueles dias.
Ele teve o sonho novamente – e dessa vez se deu conta de que era novamente – e foi a primeira vez em que se lembrou dele: a apreensão lembrava seus sentimentos no dia em que voltara da escola para casa pela última vez. Estava caminhando pelo que parecia uma rua vazia no crepúsculo. Algo se mexeu atrás dele, que se virou e olhou. Pessoas saíam de umbrais, janelas, carros, bueiros e todas olhavam para ele, se moviam na sua direção. Continuou em seu caminho e houve algo como um suspiro coletivo às suas costas. Quando olhou novamente, todos estavam correndo na sua direção de forma ameaçadora, expressões de ódio nos rostos. Começou a correr, certo de que pretendiam sua destruição. Eles o perseguiram...
Quando acordou, estava repugnante e não tinha poderes especiais. Estava sem pelos, tinha um focinho e estava coberto de escamas cinza-esverdeadas; os dedos eram alongados e tinham articulações extras, os olhos eram amarelos e estreitos; sentia dores nas coxas e na base da coluna se ficasse em pé muito tempo. Era mais fácil andar pelo quarto de quatro. Quando fez uma exclamação em voz alta sobre sua condição, sua fala tinha um sibilo pronunciado.
Era começo da noite e ouviu vozes no andar de baixo. Abriu a porta e chamou, e Claudia e Carl correram para seu quarto. Ele entreabriu a porta e permaneceu atrás dela.
– Croyd! Você está bem? – perguntou Carl.
– Sim e não – sibilou. – Ficarei bem. Neste exato instante estou morrendo de fome. Tragam comida. Muita.
– Qual o problema? – perguntou Claudia. – Você não vai sair?
– Depois! Falar depois. Comida agora!
Ele se recusou a sair do quarto ou a deixar a família vê-lo. Eles levaram a ele comida, revistas, jornais. Escutou rádio e andou de um lado para o outro, quadrúpede. Dessa vez o sono era algo a ser cortejado em vez de temido. Ele se deitou na cama, esperando que viesse logo. Mas isso lhe foi negado a maior parte da semana.
Quando acordou novamente, se viu com pouco mais de 1,80m de altura, cabelos escuros, magro e com traços que não eram desagradáveis. Era tão forte quanto havia sido em ocasiões anteriores, mas após algum tempo concluiu que não possuía poderes especiais – até escorregar na escada ao correr para a cozinha e se salvar levitando.
Depois, notou um bilhete com a caligrafia de Claudia preso à sua porta. Tinha um número de telefone e dizia que podia encontrar Bentley ali. Ele o colocou na carteira. Tinha outro telefonema a dar antes.
O Dr. Tachyon ergueu os olhos para ele e sorriu levemente.
– Podia ser pior – disse.
Croyd quase se divertiu com a avaliação.
– Como? – perguntou.
– Bem, você poderia ter tirado um curinga.
– O que exatamente eu tirei, senhor?
– O seu é um dos casos mais interessantes que vi até agora. Em todos os outros ele simplesmente seguiu seu caminho e matou a pessoa ou a modificou – para o bem ou para o mal. No seu caso... Bem, a melhor analogia é uma doença terrestre chamada malária. O vírus que você tem parece reinfectá-lo periodicamente.
– Eu tirei um curinga uma vez...
– Sim, e pode acontecer novamente. Mas diferentemente de qualquer outro com quem isso aconteceu, você só precisa esperar. Passa dormindo.
– Não quero ser um monstro novamente. Há alguma forma pela qual você possa mudar apenas essa parte?
– Temo que não. É parte de sua síndrome total. Só posso cuidar da coisa toda.
– E as chances de uma cura são de três ou quatro para uma?
– Quem lhe disse isso?
– Um curinga chamado Bentley. Ele meio que parecia um cachorro.
– Bentley foi um dos meus sucessos. Ele agora voltou ao normal. Na verdade, acabou de sair daqui.
– Mesmo? Bom saber que alguém conseguiu.
Tachyon desviou os olhos.
– Sim – respondeu um instante depois.
– Diga-me uma coisa.
– O quê?
– Se eu só mudo quando durmo, então posso evitar uma mudança permanecendo acordado, certo?
– Entendo o que quer dizer. Sim, um estimulante poderia afastar isso um pouco. Se você sentir que está vindo quando estiver em algum lugar, a cafeína de duas xícaras de café provavelmente irá segurar tempo suficiente para que volte para casa.
– Não há nada mais forte? Algo que elimine isso por mais tempo?
– Sim, há estimulantes poderosos; anfetaminas, por exemplo. Mas podem ser perigosos caso tome demais ou por tempo demais.
– De que forma são perigosos?
– Nervosismo, irritabilidade, belicosidade. Depois, psicose tóxica, com ilusões, alucinações, paranoia.
– Loucura?
– Sim.
– Bem, você pode simplesmente parar se chegar perto disso, não?
– Não acho que seja tão fácil.