Deslizou a janela do quarto, que havia deixado destravada, e se arrastou para dentro. Cambaleou até a porta do quarto de Carl e jogou o saco de dinheiro sobre sua forma adormecida. Trêmulo, retornou ao quarto e trancou a porta. Ligou o rádio. Queria lavar a mão ferida no banheiro, mas ele parecia longe demais. Caiu na cama e não se levantou.
Estava caminhando pelo que parecia uma rua vazia no crepúsculo. Algo se mexeu atrás dele, que se virou e olhou. Pessoas saíam de umbrais, janelas, carros, bueiros, e todas olhavam para ele, se moviam na sua direção. Continuou em seu caminho, e houve algo como um suspiro coletivo às suas costas. Quando olhou novamente, todos estavam correndo na sua direção de forma ameaçadora, expressões de ódio nos rostos. Ele se virou para eles, agarrou o homem mais próximo e o estrangulou. Os outros pararam, recuaram. Esmagou a cabeça de outro homem. A multidão se virou, começou a fugir. Ele perseguiu...
III – O dia da gárgula
Croyd acordou em junho para descobrir que sua mãe estava em um sanatório, seu irmão se formara no ensino médio, sua irmã estava noiva e ele tinha o poder de modular sua voz de modo a rachar ou quebrar virtualmente qualquer coisa assim que determinasse a frequência certa por meio de uma espécie de resposta ressonante que carecia de vocabulário para explicar. Também estava alto, magro, de cabelos escuros, pele amarelada e seus dedos perdidos haviam crescido de novo.
Antecipando o dia em que estaria só, falou outra vez com Bentley para acertar um grande trabalho para esse período desperto rapidamente, antes que o cansaço o derrotasse. Havia resolvido não tomar os comprimidos novamente ao se lembrar do pesadelo que foram seus últimos dias da vez anterior.
Dessa vez prestou mais atenção no planejamento e fez perguntas melhores enquanto Bentley fumava um cigarro atrás do outro resolvendo uma série de detalhes. A perda dos pais e o iminente casamento da irmã o fizeram refletir sobre a transitoriedade das relações humanas, levando à conclusão de que Bentley talvez não estivesse sempre por perto.
Foi capaz de desligar o sistema de alarme e danificar a porta do cofre do banco o suficiente para entrar, embora não tivesse planejado estilhaçar todas as janelas em três quarteirões enquanto buscava a frequência certa. Ainda assim, conseguiu escapar com uma grande quantidade de dinheiro. Dessa vez alugou um cofre em um banco do outro lado da cidade, onde deixou o grosso da sua parte. Havia ficado um tanto incomodado com o fato de o irmão estar dirigindo um carro novo.
Alugou quartos em Village, Midtown, Morningside Heights, Upper East Side e Bowery, pagando um ano adiantado de aluguel. Levava as chaves em uma corrente no pescoço, juntamente com aquela do cofre no banco. Queria lugares que pudesse alcançar rapidamente, não importando onde estivesse quando o sono chegasse. Dois dos apartamentos eram mobiliados; os outros quatro foram dotados de cobertores e rádios. Estava com pressa, então podia cuidar dos confortos depois. Havia acordado tendo noção de vários acontecimentos que se deram durante seu sono mais recente e só podia atribuir isso a uma compreensão inconsciente dos noticiários do rádio que deixou ligado da última vez. Decidiu manter a prática.
Ele demorou três dias para encontrar, alugar e equipar os novos retiros. Como o lugar em Bowery era o último, ele procurou John, se identificou e jantou com ele. As histórias que ouviu de uma gangue de espancadores de curingas o deprimiram, e quando a fome, o frio e a sonolência o assaltaram naquela noite, ele tomou um comprimido para permanecer acordado e patrulhar a área. Apenas um ou dois não fariam diferença, decidiu.
Os agressores não apareceram naquela noite, mas Croyd estava deprimido com a possibilidade de acordar como um curinga da próxima vez. Então engoliu mais dois comprimidos no café da manhã para ajeitar as coisas e decidiu mobiliar os quartos locais no acesso de energia que se seguiu. Ao escurecer tomou mais três, para uma última noite na cidade, e a música que cantou enquanto caminhava pela 42nd Street, partindo janelas prédio após prédio, fez com que cachorros uivassem por vários quilômetros ao redor e acordou dois curingas e um ás equipado com audição UHF. Brannigan Ouvido de Morcego – que faleceu duas semanas depois sob uma estátua em queda arremessada por Vincenzi Músculos no dia em que foi abatido a tiros pela polícia de Nova York – o procurou para esmagá-lo na calçada em pagamento por sua dor de cabeça e acabou lhe pagando vários drinques e pedindo uma suave versão UHF de “Galway Bay”.
Na tarde seguinte, na Broadway, Croyd reagiu a um xingamento de um taxista fazendo o carro dele passar por uma série de vibrações até desmontar. Depois, enquanto estava animado, lançou a força sobre todos os outros que haviam se revelado inimigos tocando suas buzinas. Só quando o engarrafamento resultante o fez se lembrar daquele diante de sua escola no primeiro Dia da Carta Selvagem ele se virou e fugiu.
Acordou no início de agosto em seu apartamento de Morningside Heights, lentamente se lembrando de como havia chegado lá e prometendo a si mesmo não tomar comprimidos dessa vez. Quando olhou os tumores em seu braço torcido, soube que não seria difícil manter a promessa. Dessa vez queria voltar a dormir o mais rapidamente possível. Olhando pela janela, ficou grato por ser noite, já que era um longo caminho até Bowery.
Em uma quarta-feira de meados de setembro, ele despertou e se descobriu louro-escuro, altura, peso e constituição medianos e sem nenhuma marca visível de sua síndrome do carta selvagem. Fez uma série de exames simples que a experiência ensinou serem capazes de revelar sua habilidade oculta. Nada na forma de um poder especial foi revelado.
Intrigado, vestiu as roupas mais adequadas que tinha à mão e saiu para o desjejum habitual. Pegou vários jornais no caminho e os leu enquanto devorava prato após prato de ovos mexidos, waffles e panquecas. Havia sido uma manhã fria quando saíra para a rua. Ao deixar o restaurante eram quase dez horas da manhã e estava fresco.
Foi de metrô para o centro, onde entrou na primeira loja de roupas de aparência decente que encontrou e fez uma reforma completa. Comprou dois cachorros-quentes de um ambulante e os comeu enquanto caminhava até a estação do metrô.
Saltou na altura da First Avenue, caminhou até a delicatéssen mais próxima e comeu dois sanduíches de carne em conserva com panquecas de batata. Ele se perguntou se estaria protelando. Sabia que podia ficar sentado ali o dia inteiro comendo. Podia sentir o processo de digestão acontecendo como uma fornalha em seu ventre.
Ele se levantou, pagou e partiu. Caminharia o resto da distância. Quantos meses haviam se passado?, ele se perguntou, coçando a testa. Era hora de ver Carl e Claudia. Hora de ver como mamãe estava passando. Ver se alguém precisava de dinheiro.
Quando Croyd chegou à porta da frente da casa, parou, a chave na mão. Recolocou a chave no bolso e bateu. Momentos depois Carl abriu a porta.
– Sim? – perguntou.
– Sou eu. Croyd.
– Croyd! Jesus! Entre! Não o reconheci. Quanto tempo faz?
– Bastante.
Croyd entrou.
– Como está todo mundo? – perguntou.
– Mamãe está na mesma. Mas você sabe que nos disseram para não ter muitas esperanças.
– É. Precisa de dinheiro para ela?
– Não até mês que vem. Mas dois mil seriam úteis então.
Croyd passou um envelope para ele.
– Provavelmente eu só iria confundi-la se a visse estando tão diferente.
Carl balançou a cabeça.
– Ela ficaria confusa mesmo que você tivesse a mesma aparência, Croyd.
– Ah.
– Quer comer alguma coisa?
– Quero. Claro.
Seu irmão o levou à cozinha.
– Muito rosbife aqui. Dá um bom sanduíche.
– Ótimo. Como vão os negócios?