Выбрать главу

Testemunha

Walter Jon Williams

Quando Jetboy morreu, eu assistia a uma matinê de Sonhos dourados. Queria ver a atuação de Larry Parks, que todos diziam ser memorável. Eu a estudei cuidadosamente e fiz anotações mentais.

Jovens atores fazem coisas assim.

O filme terminou, mas eu estava me sentindo bem, não tinha planos para as horas seguintes e queria ver Larry Parks novamente. Assisti ao filme uma segunda vez. Dormi na metade, e ao acordar os créditos estavam rolando. Eu estava sozinho no cinema.

Quando fui para o saguão os lanterninhas haviam sumido e as portas estavam trancadas. Tinham saído correndo e esquecido de avisar o projecionista. Escapei para uma brilhante e agradável tarde de outono e vi que a Second Avenue estava vazia.

A Second Avenue nunca está vazia.

As bancas de jornal estavam fechadas. Os poucos carros que via estavam estacionados. O letreiro do cinema havia sido desligado. Podia ouvir buzinas de carro raivosas a distância e, acima delas, o ronco de motores potentes de aviões. Havia um cheiro ruim vindo de algum lugar.

Nova York tinha o clima misterioso que as cidades às vezes ganham durante um ataque aéreo, deserta, apreensiva e nervosa. Havia estado em ataques aéreos durante a guerra, normalmente do lado atacado, e não gostava nada do clima. Comecei a caminhar na direção de meu apartamento, a um quarteirão e meio dali.

Nos primeiros trinta metros vi o que estava produzindo o cheiro ruim. Vinha de uma poça rosa-avermelhada que parecia com muitos litros de sorvete de cor esquisita derretendo na calçada e escorrendo para o esgoto.

Olhei mais de perto. Havia alguns ossos dentro da poça. Um maxilar humano, parte de uma tíbia, uma órbita. Estavam se dissolvendo em uma espuma rosa-claro.

Havia roupas sob a poça. Um uniforme de lanterninha. Sua lanterna rolara para o bueiro e as partes metálicas estavam se dissolvendo junto com os ossos.

Meu estômago se revirou quando a adrenalina entrou no sistema. Comecei a correr.

Chegando ao meu apartamento percebi que devia haver alguma espécie de emergência e liguei o rádio para conseguir informações. Enquanto esperava o Philco esquentar, fui conferir a comida enlatada no armário – duas latas de Campbell’s foi tudo o que encontrei. Minhas mãos tremiam tanto que derrubei uma das latas atrás do armário e ela rolou de lado para trás da caixa de gelo. Empurrei a lateral da caixa de gelo para pegar a lata e de repente foi como se a luz mudasse, e a caixa de gelo voou por metade do aposento e quase saiu através da parede. A panela que coloquei embaixo para conter o gelo derretido caiu no chão.

Peguei a lata de sopa. Minhas mãos ainda tremiam. Recoloquei a caixa de gelo no lugar e era leve como uma pena. A luz continuava a mudar de forma esquisita. Consegui erguer a caixa com uma das mãos.

O rádio finalmente esquentou e soube do vírus. Pessoas que se sentissem doentes deviam ir aos hospitais de campanha de emergência montados pela Guarda Nacional por toda a cidade. Havia um em Washington Square Park, perto de onde eu morava.

Não me sentia doente, mas por outro lado podia fazer malabarismo com a caixa de gelo, o que não era exatamente um comportamento normal. Caminhei até Washington Square Park. Havia baixas por todo lado – alguns simplesmente caídos na rua. Não consegui olhar para muitos deles. Era pior do que qualquer coisa que vira na guerra. Sabia que, como estava saudável e me movimentava, os médicos me colocariam no fim da lista de tratamento e se passariam dias antes que conseguisse ajuda, então caminhei até um encarregado, disse que havia sido do exército e perguntei o que podia fazer para ajudar. Imaginei que se começasse a morrer pelo menos estaria perto do hospital.

Os médicos me pediram para ajudar a instalar uma cozinha. Pessoas gritavam, morriam e mudavam diante dos olhos dos médicos, que não podiam fazer nada a respeito. Alimentar as vítimas era tudo em que conseguiam pensar.

Fui até um caminhão de duas toneladas e meia da Guarda Nacional e comecei a pegar caixas de comida. Cada uma pesava uns 20 quilos e empilhei seis, uma em cima da outra, e as tirei do caminhão com um braço só. Minha percepção da luz continuava a mudar de forma estranha. Esvaziei o caminhão em cerca de dois minutos. Outro caminhão havia ficado atolado na lama ao tentar cruzar o parque, então o peguei e levei-o para onde deveria estar, depois descarreguei e perguntei aos médicos se precisavam de mim para mais alguma coisa.

Havia um brilho estranho ao redor de mim. As pessoas me disseram que quando fiz uma das proezas eu brilhei, que uma aura dourada brilhante cercou meu corpo. Olhar para o mundo através de minha própria radiância fazia com que a luz parecesse mudar.

Não pensei muito nisso. O cenário ao meu redor era esmagador e continuou assim durante dias. As pessoas tiravam a rainha negra ou o curinga, se tornando monstros, morrendo, se transformando. A lei marcial havia sido instaurada na cidade – era como na época da guerra. Depois dos primeiros tumultos nas pontes não houve mais distúrbios. A cidade viveu com blecautes, toques de recolher e patrulhas durante quatro anos e as pessoas simplesmente retomaram os hábitos da guerra. Os boatos eram ensandecidos – um ataque marciano, liberação acidental de gás venenoso, bactérias espalhadas por nazistas ou por Stalin. Para completar, milhares de pessoas juravam ter visto o fantasma de Jetboy voando, sem seu avião, sobre as ruas de Manhattan. Continuei a trabalhar no hospital, transportando cargas pesadas. Foi onde conheci Tachyon.

Ele apareceu para entregar um soro experimental que esperava que pudesse aliviar alguns sintomas e de início eu pensei, Ah, Cristo, uma bicha conseguiu passar pelos guardas com uma poção dada pela sua tia Nelly. Era um cara magrelo com um longo cabelo vermelho metálico abaixo dos ombros, e eu sabia que não podia ser cor natural. Ele se vestia como se tivesse conseguido suas roupas no Exército da Salvação no bairro dos teatros, um paletó laranja brilhante, como usaria um líder de banda, suéter carmesim, chapéu de Robin Hood com uma pena, calções com meias com estampa de losangos e sapatos bicolores, que pareceriam inadequados até em um cafetão. Estava indo de leito em leito com uma bandeja cheia de seringas, observando cada paciente e enfiando as agulhas nos braços das pessoas. Pousei a máquina de raios X que carregava e corri para detê-lo antes que pudesse causar algum mal.

Então percebi que entre as pessoas que o seguiam havia um general de três estrelas, o coronel aviador da Guarda Nacional que dirigia o hospital e o Sr. Archibald Holmes, que era um da velha turma de Franklin D. Roosevelt na Agricultura e que reconheci imediatamente. Ele fora responsável por um grande órgão de ajuda na Europa depois da guerra, mas Truman o mandara para Nova York assim que a peste atacou. Eu me coloquei atrás de uma das enfermeiras e perguntei o que estava acontecendo.

– É um novo tipo de tratamento – disse ela. – Aquele Dr. Tach alguma coisa trouxe.

– O tratamento é dele? – perguntei.

– É – disse, franzindo o cenho para mim. – Ele é de outro planeta.

Olhei para os calções e o chapéu de Robin Hood.

– Tá brincando.

– Não. Sério. Ele é.

De perto era possível ver olheiras sob seus estranhos olhos roxos, o cansaço que transparecia em seu rosto. Ele estava se esforçando demais desde a catástrofe, como todos os médicos ali – todos exceto eu. Eu me sentia cheio de energia apesar de só ter algumas poucas horas de sono por noite.

O coronel aviador da Guarda Nacional olhou para mim.

– Eis outro caso. Este é Jack Braun.

Tachyon olhou para mim.

– Seus sintomas? – perguntou. Tinha uma voz grave, um sotaque discreto da Europa Central.

– Sou forte. Consigo levantar caminhões. Um brilho dourado me cerca quando faço isso.