Uma ilusão, claro, porque certas noites ainda acordo com os 88 assoviando em meus ouvidos, o terror se contorcendo em minhas entranhas, o velho ferimento em minha panturrilha latejando e me lembro de como deitava de costas em um buraco de morteiro com lama até o pescoço, esperando que a morfina fizesse efeito enquanto olhava para o céu para ver um grupo de Thunderbolts prateados com o sol refletindo em suas asas grossas, os aviões saltando as montanhas mais facilmente do que eu conseguia saltar de um jipe. E me lembro de como era ficar deitado ali, furioso de inveja, porque os pilotos de caça estavam em seu céu sereno enquanto eu sangrava em meu curativo de campanha e esperava morfina e plasma, e pensava que se um dia apanhasse um daqueles desgraçados em terra faria com que pagasse por aquilo...
Quando o Sr. Holmes começou os testes, provou exatamente o quanto eu era forte, que era mais forte do que qualquer um já tinha visto, ou mesmo imaginado. Se eu me preparasse suficientemente bem, podia levantar até quarenta toneladas. Balas de metralhadoras amassavam contra meu peito. Projéteis de canhão de 20 mm, capazes de perfurar blindagem, me derrubavam pela transferência de energia, mas eu me levantava novamente sem ferimentos.
Eles tiveram medo de usar algo maior que um 20 mm nos testes. Eu também. Se fosse atingido por um canhão de verdade, em vez de apenas por uma metralhadora grande, provavelmente viraria mingau.
Tinha meus limites. Após algumas horas disso, começava a ficar cansado. Enfraquecia. Balas começavam a doer. Tinha de parar e descansar.
Tachyon imaginara bem ao falar de um campo de força biológico. Quando eu estava em ação ele me cercava como um halo dourado. Eu não exatamente controlava isso – se alguém disparasse uma bala nas minhas costas de surpresa, o campo de força se ligava sozinho. Quando começava a ficar cansado, o brilho ia diminuindo.
Nunca fiquei suficientemente cansado para ele sumir por completo, não quando o queria ligado. Tinha medo do que poderia acontecer e sempre tomava o cuidado de descansar se precisasse.
Quando o resultado dos testes chegou, o Sr. Holmes me chamou ao seu apartamento em Park Avenue South. Era um lugar grande, o quinto andar inteiro, mas muitos dos aposentos tinham aquele cheiro de falta de uso. Sua esposa havia morrido de câncer de pâncreas em 1940 e desde então ele desistiu de quase toda a vida social. A filha estava na escola.
O Sr. Holmes me deu um drinque e um cigarro e perguntou o que eu achava do fascismo e o que podia fazer em relação a isso. Lembrei-me de todos aqueles oficiais da SS e arrogantes paraquedistas da Luftwaffe, a Força Aérea alemã, e pensei no que poderia fazer em relação a eles agora que era a coisa mais forte do planeta.
– Imagino que agora daria um belo soldado – respondi.
Ele me lançou um sorriso fino.
– Você gostaria de ser um soldado novamente, Sr. Braun?
Entendi imediatamente o que ele queria dizer. Havia uma emergência. O mal estava solto no mundo. Talvez pudesse fazer algo em relação a isso. E ali estava um homem que se sentara à direita de Franklin Delano Roosevelt, que por sua vez se sentara à direita de Deus, no que me dizia respeito, e me pedindo para fazer algo em relação a isso.
Claro que me ofereci. Provavelmente isso me tomou três segundos inteiros.
O Sr. Holmes apertou minha mão. Depois fez outra pergunta.
– Como se sentiria trabalhando com um homem de cor?
Dei de ombros.
Ele sorriu.
– Bom. Nesse caso, terei de apresentá-lo ao fantasma de Jetboy.
Eu devo tê-lo encarado. Seu sorriso aumentou.
– Na verdade, seu nome é Earl Sanderson. É um senhor personagem.
Estranhamente, eu conhecia o nome.
– O Sanderson que costumava jogar futebol pela Rutgers? Um atleta infernal.
O Sr. Holmes pareceu chocado. Talvez não acompanhasse esportes.
– Ah. Acho que irá descobrir que ele é um pouco mais que isso.
Earl Sanderson Jr. nasceu em uma vida muito diferente da minha, no Harlem, Nova York. Era onze anos mais velho do que eu e talvez nunca conseguisse ser como ele ou o alcançasse.
Earl Jr. era cabineiro, um homem inteligente, autodidata, admirador de Frederick Douglass e Du Bois. Foi fundador do Niagara Movement, que se tornou a NAACP, Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, e depois da Irmandade de Cabineiros de Vagão-Leito. Um homem duro e inteligente, absolutamente à vontade no Harlem raivoso da época.
Earl Jr. era um jovem brilhante e seu pai insistiu em que não desperdiçasse isso. No ensino médio, ele se destacou academicamente e como atleta, e quando seguiu os passos de Paul Robeson para a Rutgers, em 1930, pôde escolher a bolsa.
Com dois anos de universidade, ingressou no Partido Comunista. Quando o conheci mais tarde, fez parecer como se fosse a única escolha razoável.
– A Depressão estava aumentando – disse-me ele. – Os tiras estavam atirando em organizadores de sindicatos por todo o país e os brancos estavam descobrindo como era ser tão pobres quanto os de cor. Tudo o que tínhamos da Rússia na época eram fotografias das fábricas funcionando com capacidade plena, e aqui nos Estados Unidos as fábricas estavam fechadas e os operários, passando fome. Achei que era só uma questão de tempo até a revolução. O PC era o único em que as pessoas, ao trabalharem pelos sindicatos, também trabalhavam pela igualdade. Tinham um slogan: “Preto e branco, unidos na luta”, e aquilo soava correto para mim. Estavam se lixando para a segregação: olhavam você nos olhos e o chamavam de “camarada”. O que era mais do que eu já havia recebido de qualquer outro.
Ele tinha todos os bons motivos do mundo para ingressar no PC em 1931. Depois todos esses bons motivos se rebelariam e arrasariam conosco.
Não estou certo de por que Earl Sanderson se casou com Lillian, mas entendo muito bem por que Lillian perseguiu Earl por todos aqueles anos.
– Jack, ele simplesmente brilhava – disse-me ela.
Lillian Abbott conheceu Earl quando ele estava no terceiro ano do ensino médio. Depois daquele primeiro encontro, passou todo minuto livre com ele. Comprou seus jornais, pagou sua entrada nos teatros com o troco, foi a reuniões radicais. Aplaudiu-o em eventos esportivos. Ingressou no PC um mês depois que ele. E algumas semanas após deixar a Rutgers, summa cum laude, o desposou.
– Não dei nenhuma escolha a Earl – disse ela. – A única forma que tinha de me fazer parar de falar nisso era se casar comigo.
Nenhum deles sabia no que estava se metendo, claro. Earl estava envolvido em questões maiores do que ele mesmo, na revolução que acreditava estar vindo e talvez achasse que Lillian merecia um pouco de felicidade naquela época de amargura. Não custou nada a ele dizer sim.
Para Lillian, custou quase tudo.
Dois meses depois do casamento Earl estava em um barco rumo à União Soviética para estudar um ano na Universidade Lenin, aprendendo a ser um bom agente do Comintern. Lillian ficou em casa, trabalhando na loja da mãe, indo a reuniões do partido que pareciam um pouco sem graça sem Earl. Aprendendo, sem grande entusiasmo pela tarefa, a ser a esposa de um revolucionário.
Após um ano na Rússia, Earl foi cursar Direito em Columbia. Lillian o sustentou até se formar e ir trabalhar como advogado para A. Philip Randolph, da Irmandade de Cabineiros de Vagões-Leito, um dos sindicatos mais radicais dos Estados Unidos. Earl Jr. deve ter ficado orgulhoso.