Olhando retrospectivamente, fico impressionado com nossas suposições. Estávamos determinados a derrubar o governo constitucional de uma grande nação estrangeira e não achávamos nada em relação a isso... Até mesmo Earl foi em frente sem pensar uma segunda vez. Havíamos acabado de passar anos combatendo fascistas na Europa e não víamos nenhum problema em ir para o sul e esmagá-los lá.
Quando partimos, tínhamos outro homem conosco. David Harstein parecia simplesmente ter dado um jeito de embarcar no avião. Lá estava ele, um enxadrista judeu do Brooklyn, um daqueles jovens de cabelos encaracolados e fala rápida que você via por toda a Nova York vendendo seguros contra inundação, pneus de carros usados ou ternos sob medida feitos de alguma nova fibra milagrosa que era tão boa quanto casimira, e de repente ele era um membro do EPD e dava as cartas. Era impossível não gostar dele. Era impossível não concordar com ele.
Ele era um exótico, certo. Transpirava feromônios que deixavam todos em paz com ele e com o mundo, criava uma atmosfera de bonomia e sugestão. Podia convencer um stalinista albanês a ficar de ponta-cabeça e cantar o hino norte-americano – pelo menos enquanto ele e seus feromônios estivessem no aposento. Depois, quando nosso stalinista albanês recobrasse os sentidos, imediatamente se denunciaria e daria um tiro em si mesmo.
Decidimos manter em segredo os poderes de David. Espalhamos uma história de que ele era uma espécie de super-humano ardiloso, como O Sombra do rádio, e que era nosso batedor. Na verdade, apenas ia para encontros com as pessoas e fazia com que concordassem conosco. Funcionava bastante bem.
Perón ainda não se firmara no poder, estando no cargo havia apenas quatro meses. Demoramos duas semanas para organizar o golpe que acabou com ele. Harstein e o Sr. Holmes iam para reuniões com oficiais do exército, e antes que terminassem os coronéis estavam jurando entregar a cabeça de Perón numa bandeja, e mesmo que depois começassem a pensar melhor nas coisas, sua noção de honra não os deixaria recuar em suas promessas.
Na manhã antes do golpe, descobri algumas das minhas limitações. Havia lido quadrinhos quando estava no exército e vi como, quando os caras maus estavam tentando fugir de carro em alta velocidade, o Super-Homem pulava na frente do carro, que ricocheteava nele.
Tentei isso na Argentina. Havia um major peronista que tinha de ser impedido de chegar ao seu posto de comando e saltei na frente do seu Mercedes. Fui lançado sessenta metros contra uma estátua do próprio Juan P.
O problema é que eu não era mais pesado que o carro. Quando coisas colidem, é o objeto com menos momento linear que cede, e o peso é um componente do momento. Não importa quão forte o objeto mais leve seja.
Fiquei mais esperto depois disso. Derrubei a estátua de Perón de sua base e a lancei contra o carro. Isso resolveu o problema.
Há algumas outras coisas sobre o trabalho do ás que você não aprende lendo revistas em quadrinhos. Eu me lembro de ases dos quadrinhos agarrando canos de canhões de tanques e dando nós neles.
De fato é possível fazer isso, mas você precisa ter alavancagem. Precisa fincar os pés em algo sólido de modo a ter em que fazer pressão. Era muito mais fácil para mim mergulhar sob o tanque e o arrancar das lagartas. Depois ia para o outro lado, colocava os braços ao redor do cano do canhão, com o ombro abaixo dele, e puxava para baixo. Usava o ombro como o ponto de apoio de uma alavanca e dobrava o cano ao redor de mim mesmo.
Era o que fazia quando estava com pressa. Quando tinha tempo eu abria caminho a pancada pelo fundo do tanque e o rasgava de dentro para fora.
Mas devaneio. De volta a Perón.
Havia duas coisas fundamentais que precisavam ser feitas. Não era possível influenciar alguns peronistas leais, e um deles era comandante de um batalhão blindado aquartelado em um complexo fortificado na periferia de Buenos Aires. Na noite do golpe, peguei um dos tanques e o joguei de lado em frente ao portão, depois simplesmente apoiei o ombro nele e o mantive no lugar enquanto os outros tanques viravam lixo tentando movê-lo.
Earl imobilizou a Força Aérea de Perón. Simplesmente voou atrás dos aviões na pista e arrancou os estabilizadores.
A democracia venceu. Perón e sua piranha loura fugiram para Portugal.
Eu me dei algumas horas de folga. Enquanto multidões de classe média iam para as ruas festejar, eu estava em um quarto de hotel com a filha do embaixador francês. Escutando o canto do povo através da janela, sentindo o gosto de champanhe e Nicolette em minha língua, concluí que aquilo era melhor que voar.
Nossa imagem foi construída naquela campanha. Eu vestia meu velho uniforme do exército a maior parte do tempo, e é dessa minha imagem que a maioria das pessoas se lembra. Earl usava fardas castanhas de oficial da Força Aérea com a insígnia arrancada, botas, capacete, óculos, cachecol e sua velha jaqueta de couro de aviador com o símbolo do 332º no ombro. Quando não estava voando, tirava o capacete e colocava uma velha boina preta que guardava no bolso. Com frequência, quando éramos convidados a fazer aparições pessoais, pediam a Earl e a mim para vestir as fardas para que todos nos reconhecessem. O público pareceu nunca se dar conta de que a maioria do tempo vestíamos terno e gravata, exatamente como todo mundo.
Quando Earl e eu estávamos juntos, costumava ser em situação de combate, e por esse motivo nos tornamos grandes amigos... As pessoas em combate se tornam íntimas muito rapidamente. Eu falava sobre minha vida, minha guerra, sobre mulheres. Ele era um pouco mais reservado – talvez não tivesse certeza de como eu reagiria ao ouvir de seus feitos com garotas brancas –, mas finalmente uma noite, quando estávamos no norte da Itália procurando por Bormann, ouvi tudo sobre Orlena Goldoni.
– Eu costumava ter que pintar suas meias pela manhã – disse Earl. – Tinha de maquiar as pernas para que parecesse que tinha meias de seda. E tinha que pintar a costura atrás com um delineador – contou, sorrindo. – Era um trabalho de pintura que sempre gostei de fazer.
– Por que você não simplesmente dava meias a ela? – perguntei. Era bastante fácil consegui-las. Soldados escreviam a amigos e parentes nos Estados Unidos pedindo que as enviassem.
– Eu dei muitos pares a ela – disse Earl, dando de ombros. – Mas Lena as repassava às camaradas.
Earl não tinha guardado uma foto de Lena, não onde Lillian pudesse encontrar, mas eu a vi nos filmes depois, quando foi apresentada como a resposta europeia a Veronica Lake. Cabelos louros despenteados, ombros largos, voz rouca. A persona de Lake na tela era legal, mas a de Goldoni era atraente. As meias de seda eram de verdade nos filmes, mas também as pernas dentro delas, e o filme festejou as pernas de Lena o máximo que o diretor achou que conseguiria. Lembro-me de pensar em como Earl devia ter se divertido pintando-as.
Ela era cantora de cabaré em Nápoles quando se conheceram, em uma das poucas boates que permitiam a entrada de soldados negros. Tinha 18 anos, negociava no mercado negro e havia sido mensageira dos comunistas italianos. Earl deu uma olhada nela e jogou a cautela pela janela. Talvez tenha sido a única vez na vida em que se entregou. Começou a correr riscos. Escapar do campo à noite, driblando patrulhas da polícia militar para ficar com ela, voltar furtivamente no começo da manhã e estar no campo pronto para decolar para Bucareste ou Ploesti...
– Sabíamos que não era para sempre. Sabíamos que a guerra iria terminar mais cedo ou mais tarde – disse Earl. Havia uma espécie de distanciamento em seus olhos, a lembrança de uma dor, e pude ver o quanto deixar Lena lhe custara. Deu um longo suspiro. – Éramos adultos em relação a isso. Então nos despedimos. Fui dispensado e voltei a trabalhar para o sindicato. E não nos vimos desde então. Agora ela está nos filmes. Não vi nenhum deles – disse, balançando a cabeça.